Kamille Viola Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro 21/09/2020 04h00
Quando foi morar na Suíça, a jornalista Patricia Almeida descobriu que não existiam escolas inclusivas no país. Conclusão: sua filha mais nova, Amanda, que tem Síndrome de Down, passou cinco anos tendo aulas particulares com uma psicopedagoga num centro terapêutico que oferecia reforços escolares. Até que a família precisou voltar ao país, em 2018. No Brasil, Amanda poderia voltar a frequentar a escola regularmente, mas a falta de convivência da adolescente com outros jovens deixava a mãe temerosa. A ideia de matriculá-la em uma escola particular pequena, que já conhecia, teve de ser descartadas pelas lacunas no currículo escolar da jovem. A alternativa foi matricular a adolescente de 14 anos em uma escola maior da rede pública. [ x ] Surgiu, então, a preocupação: Amanda não convivia com pessoas de sua idade há muito tempo. "Eu pensei: 'Como vou botar essa menina supervulnerável, superingênua, que não tem a menor noção de como agir no meio de um grupo de estudantes da idade dela, no colégio, enquanto os outros alunos viviam num mundo completamente diferente do que ela tinha vivido até aquele momento?'; Eu estava feliz em voltar para cá e ela ter essa oportunidade de inclusão, mas, ao mesmo tempo, em pânico, porque não sabia como iria acontecer", admite. A principal dúvida da mãe era como conversar com a filha sobre abuso sexual. A apreensão não era sem razão: entre 2011 e 2017, o Disque 100, canal de denúncias oficial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), registrou 203.275 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Em 92% dos casos, as vítimas eram do sexo feminino. "Já são números altíssimos. Imagina os que não estão sendo denunciados", comenta a jornalista. Patricia pensou: ela precisa aprender a se defender. Assim, surgiu o projeto Eu Me Protejo, que conta com uma cartilha grátis disponível para download ou para impressão em português, inglês, espanhol e libras, além de versão no formato videolivro em português e libras. Patricia e sua família moraram no exterior por cerca de dez anos. A ausência de escolas inclusivas na Suíça foi uma infeliz surpresa. "Foi uma enorme decepção. Não podia imaginar que na capital dos direitos humanos, Genebra, não havia inclusão. Não tem ninguém com Síndrome de Down lá que tenha chegado ao ensino médio. A filha de uma amiga minha que chegou lá estava na oitava série e eles não sabiam o que fazer com a menina, porque nunca tinham tido um caso assim", lembra. A jornalista Patricia Almeida, criadora da cartilha Eu Me Protejo Imagem: Arquivo pessoal O conteúdo para a cartilha foi criado a partir de uma longa pesquisa feita por Patricia e voltada para a educação sexual da filha. Com mestrado em Estudos da Deficiência e muita experiência com informação inclusiva — ela é cofundadora do Movimento Down, uma plataforma de informações sobre a síndrome —, pegou ilustrações da internet e escreveu um texto com linguagem simples, o chamado 'easy read', técnica para pessoas com deficiência intelectual, e desenho universal para aprendizagem, também uma técnica inclusiva. No Dia da Síndrome Internacional de Down, foi convidada a falar na Apae DF, em Brasília, e mostrou a cartilha. Foi um sucesso. "As pessoas aplaudiam de pé, você via que elas nunca tinham ouvido falar daquilo abertamente numa apresentação", espanta-se. No final, a psicóloga Neusa Maria, que Patricia já tinha encontrado em outros eventos, pediu o PDF. Ela trabalhava há 20 anos com meninas e mulheres na periferia, e disse que nunca tinha visto um material como aquele. Queria usar a cartilha em creches, escolas e nos atendimentos. "Ela ficava assustada com o que via nos atendimentos, de ninguém das famílias falar sobre isso. Pior ainda, porque são pessoas que não só não receberam educação [sobre o tema], então nem sabem que estão sendo abusadas, como muitas não falam. E, se falam, são testemunhas consideradas não confiáveis. O grau de vulnerabilidade é alto", explica Patricia. Segundo a psicóloga, a cartilha estava sendo muito bem aceita por crianças com e sem deficiência, inclusive as muito pequenas, que compreendiam o conteúdo a partir das ilustrações. Neusa Maria disse que havia algumas delas apontando para as figuras e denunciando abusos. "Quando ela me falou isso, eu disse: 'A gente tem que fazer esse negócio chegar mais longe'", lembra Patricia. As duas se juntaram para aprimorar o conteúdo e contrataram uma ilustradora para fazer os desenhos. Patricia também formou um grupo de WhatsApp com cerca de 50 voluntários de diversas áreas, inclusive pessoas que sofreram abusos e toparam ser consultores do trabalho. "Esse grupo é muito diverso, isso é muito importante. A gente parou para ouvir pessoas pró-vida [contra o direito ao aborto], por exemplo. Aquelas famílias eram contra mostrar para uma criança, na mesma cartilha, como colocar uma camisinha. Acho que foi fundamental ouvi-las, entender que não falavam para os filhos sobre isso, o que as constrangia", relata. "Discutimos, por exemplo: 'As pessoas precisam saber das partes do corpo [que não podem ser tocadas pelos outros]. Vamos botar as crianças nuas ou vestidas nas ilustrações?'. Vestidas a gente alcançaria muito mais gente. Então botamos com biquíni e sunga. No texto, palavras que não ofendam ninguém e linguagem o mais simples possível, não só porque a gente está falando para crianças ou pessoas com deficiência, mas porque muitos pais são analfabetos funcionais", pondera. Por volta de um ano depois, nasceram a cartilha e o site Eu Me Protejo, que reúne informações sobre o projeto, além de conteúdos como teatrinho de bonecos e música feitos com base no material. A publicação tem 30 páginas, com um parágrafo por página e ilustração bem grande, um dos conceitos da linguagem simples. Em fevereiro, houve uma prévia do material, com a divulgação de um dos slides, depois que veio à tona o caso de um professor de uma escola particular em São Paulo que foi pego com fotos de meninas nuas. Em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, foi feito o lançamento oficial do projeto. Por se tratar de um tema sensível, Patricia Almeida admite que tinha muito medo das reações à cartilha. "Mas, por incrível que pareça, ela foi muito bem recebida. A gente conseguiu achar uma forma de falar sobre o assunto sem falar sobre sexo. Antes, íamos falar também de sexualidade, mas resolvemos fazer o recorte para crianças de até 8 anos. A gente achou que, se garantisse essa faixa etária, pegaria um público que ainda não está na internet, se informando — por mais que muitas vezes acabe se informando de forma equivocada, mas essa é outra batalha. Pensamos: 'Vamos garantir isso aqui.' Não existem as palavras 'sexo' ou 'sexual' na cartilha. A gente não chama de educação sexual, a gente mudou a narrativa: é educação para a prevenção contra a violência", explica. Em maio, o projeto recebeu o Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2020, na categoria Produção de Conhecimento. O objetivo é prevenção. Não somente educando as potenciais vítimas, mas também levando consciência a quem poderia se tornar um abusador. "Quando você diz: 'Não toque em corpo do outro', 'o corpo da outra pessoa deve ser protegido', 'você não tem o direito de tocar nele, assim como ninguém tem o direito de tocar em você', está preparando os meninos para que não virem agressores quando crescerem [já que homens são maioria dos abusadores, segundo dados do Disque 100]", frisa. "Isso inclusive foi falado por uma mulher que foi abusada a partir dos três anos por tios. Ela disse: 'Não vamos pôr culpa na vítima. Minha mãe me falava que não podia, e mesmo assim eu fui abusada.' O outro tem que aprender a não agredir também. Temos que ajudar a promover a cultura de não violência desde a pré-escola", defende Patricia.
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